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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Documentários de basquete imperdíveis: ONCE BROTHERS

O documentário "Once Brothers" (Uma vez irmãos) é uma co-produção da ESPN Films e da NBA Entertainment que fez parte da série "30 for 30", filme dirigido por Michael Tolajian e narrado por seu protagonista Vlade Divac.


Os fatos narrados contam a relação de dois jogadores de basquete da extinta Iugoslávia: o sérvio Vlade Divac e o croata Drazen Petrovic, que jogaram juntos na seleção da Iugoslávia de 1986 a 1990 e eram amigos próximos, porém, acabaram tendo a amizade rompida após ficarem de lados opostos pela Guerra Civil que segregou a Iugoslávia após o fim do comunismo.

Divac, em 1986, tinha apenas 18 anos quando chamou a atenção no cenário basquetebolístico de seu país, quando o Partizan, de Belgrado, investiu pesado em sua contratação. Logo depois, ele já era pela primeira vez convocado à seleção nacional. Ele tinha 18 anos quando assinou seu primeiro contrato profissional e quando foi chamado a defender a seleção de basquete da Iugoslávia. Já Petrovic, quatro anos mais velho, já era a principal estrela do basquete iugoslavo neste momento, sendo uma referência para Divac, ainda que os dois atuassem em posições distintas. Juntos, eles brilharam nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, classificando a Iugoslávia para a final diante da União Soviética, que para surpresa geral havia vencido aos Estados Unidos na semi-final. Juntos, eles conquistaram a Medalha de Prata e chamaram atenção do mundo. Em 1989 vingaram-se dos soviéticos e se sagraram campeões do Eurobasket, alcançando o topo do continente. Pelas palavras de Divac: "parecia que ninguém poderia nos parar". Foi mais do que suficiente para que abrissem as portas da NBA para jogadores europeus, numa época na qual o basquete profissional dos EUA vivia um momento de abertura para a Globalização, buscando expandir seus mercados. Conquistada a Europa, ambos foram para a América onde se tornaram os dois primeiros jogadores estrangeiros a conquistar o estrelato da NBA: Vlade Divac foi selecionado no Draft pelo Los Angeles Lakers, chegando para jogar ao lado de Magic Johnson e Kareem Abdul Jabbar, e Drazen Petrovic foi contratado pelo Portland Trail Blazers, onde a estrela era Clyde Drexler; ambos ingressavam na NBA para a temporada 1989-90.


A aventura em terras estrangeiras aproximou ainda mais os dois. Especialmente para Divac, a adaptação à NBA exigiu exercícios específicos para a intensificação do trabalho defensivo e de um jogo mais físico na marcação dentro do garrafão. Ele não falava uma palavra em inglês, e isto gerou as tradicionais piadas com estrangeiros que não falam o idioma local, mas sua adaptação e integração foi rápida. Divac tinha fragilidade no jogo defensivo, seus companheiros de Lakers o achavam desengonçado na marcação, mas em compensação ele tinha um controle de bola e uma habilidade para assistências que o fizeram ganhar bastante minutos de quadra no time do Lakers. Em Portland, o jogo de Petrovic - cadenciado, com muita infiltração e com um grande diferencial no tiro de três, que o faziam ser um jogador de 30 a 40 pontos por jogo na Europa - teve mais dificuldade para encontrar espaço numa equipe que estava cheia de armadores no elenco. No Trail Blazers, durante sua primeira temporada, Drazen Petrovic teve pouquíssimos minutos de quadra. A angústia por não jogar e as experiências de choque cultural por chegar a outro país faziam com que os dois, Petrovic e Divac, falassem diariamente por telefone durante horas. Como Divac disse no documentário, era duro ver um jogador que pontuava tanto ao lado dele na Iugoslávia comemorar quando tinha conseguido fazer dois pontos num jogo. Levaria algumas temporadas para Petrovic conseguir seu espaço na NBA, e ele só conseguiu mesmo quando migrou para o New Jersey Nets, onde voltou a ser um grande pontuador, resgatando seu basquete dos tempos dos clubes europeus, e provando aos norte-americanos que tinha valor.

Com a queda da União Soviética, emergiram movimentos separatistas na Iugoslávia, especialmente na Croácia e na Bósnia. As tensões étnicas enterradas por longas décadas voltaram a emergir. Como depõem no documentário os croatas Toni Kukoc e Dino Radja, companheiros de Seleção da Iugoslávia de Divac e Petrovic, as divergências étnicas no país sempre existiram, mas eles jamais acreditaram que pudessem ser algo sério a ponto de levar a um separatismo. Quando os movimentos separatistas começaram a fazer "mais barulho", o time da Iugoslávia seguia jogando junto, sem dar margem à origem de cada jogador, não era um tema que era colocado em debate entre eles, embora todos soubessem quem tinha nascido onde, soubessem de qual região cada um era. Mas forças poderosas, além do controle deles - político e pessoal - impediram a realização de alguns dos sonhos daquela magnífica geração de jogadores que atuava junto com a camisa da Iugoslávia.

Pelas palavras de Vlade Divac: "Once Brothers é a minha jornada para entender uma sensação de perda duradoura - da minha equipe, do nosso futuro compartilhado e das pessoas que uma vez considerava meus irmãos". O documentário, além de Vlade Divac, traz depoimentos daqueles que conviveram no time da Iugoslávia - Toni Kukoc, Dino Radja e Zarko Paspalj - de ex-jogadores que vivenciaram a chegada de Divac e Petrovic na NBA - Magic Johnson, Larry Bird, Jan Hubbard, Jerry West, Clyde Drexler, Danny Ainge, Rick Adelman, Kenny Anderson, Derrick Coleman, Bill Fitch - e também os depoimentos de Aleksandar Petrovic, irmão de Drazen, e de sua mãe, Biserka Petrovic. É uma história de amizade, guerra, encontros, desencontros, sucessos, fracassos, sorrisos e lágrimas. É uma grande história de erros e acertos, de escolhas pessoais e impessoais, histórias de vida. O basquete está ali, servindo de pano de fundo, mas passa desapercebido em tantas e tantas vezes nas quais "Once Brothers" faz o expectador esquecer que é uma história que tem a ver com uma bola laranja e cestas. É o tipo de história que te deixa pensando na vida por horas, por dias: como relações podem ser destruídas por causa do ponto geográfico onde um ou outro nasceu. E como tudo que pode ser dito pode acabar se perdendo no silêncio. Pelas palavras de Vlade Divac: "Construir uma amizade leva anos. Mas, para destruí-la, leva um segundo".

Em 1990, Drazen Petrovic e Vlade Divac levaram a equipe nacional iugoslava para o topo do basquete mundial, conquistando o título do Campeonato Mundial disputado naquele ano em Buenos Aires, na Argentina. E foi lá, após a final e a conquista do título, que a relação entre os dois mudaria para sempre. Ao fim daquele jogo, a final do Campeonato Mundial, com o título conquistado pela Iugoslávia, um fã com uma bandeira da Croácia entrou na quadra. Vlade Divac o afastou, tomando a bandeira de suas mãos e a jogando para fora de quadra. Divac fala no documentário que ele se sentiu obrigado a expulsar o fã porque a seleção nacional representava a nação inteira, ele queria uma única Iugoslávia, não queria se manifestar contra a Croácia. Talvez por ingenuidade, talvez por conveniência, o único que ele queria era continuar tendo para sempre a nação na qual cresceu, à qual conhecia e defendia como sendo seu país. Ele garante que teria retirado uma bandeira da Sérvia da mesma forma que tirou das mãos do torcedor e jogou para fora de quadra a bandeira da Croácia. O fato é que nesta época a Guerra Civil já estava em marcha, e as tropas do governo já atacavam cidades da Croácia e da Bósnia onde se levantavam vozes separatistas. Uma sangrenta luta que levou à condenação pelos tribunais internacionais, por crimes de guerra cometidos, ao então presidente iugoslavo, o sérvio Slobodan Milosevic. Neste contexto, o ato de Divac ao fim do jogo foi amplamente repercutido e rejeitado pela imprensa croata: como todo grande ato histórico, foi ampliado, transformado numa ação na qual Divac cuspiu na bandeira da Croácia. De lados opostos de uma guerra civil mortal, ali, naquele ato, rompia-se - silenciosamente, sem palavras - a relação entre os jogadores sérvios e croatas, que nunca mais atuariam juntos defendendo a mesma equipe. Enquanto Petrovic e Divac continuavam se enfrentando nas quadras de basquete da NBA, nenhuma palavra voltou a ser trocada entre os dois. Drazen Petrovic simplesmente se afastou e passou a ignorá-lo e a deixar de falar com Divac, que tinha dificuldade em entender a atitude, a qual, porém, não era isolada, pois Kukoc e Radja também passaram a não falar mais com ele, ainda que eles jamais tenham tido a mesma proximidade e amizade que Petrovic tinha com Divac.

O habilidoso Drazen Petrovic em seus tempos no Real Madrid

A separação da Iugoslávia acabou consumada, e a Croácia ganhou o direito de ter sua própria seleção, afinal tornara-se uma nação independente. Nos Jogos Olímpicos de 1992, em Barcelona, foi o time de Petrovic, Kukoc e Radja quem chegou à final para enfrentar o Dream Team dos EUA, com Magic Johnson, Michael Jordan e Larry Bird, o maior time de basquete de todos os tempos. A Croácia ficou com a Medalha de Prata, e Vlade Divac teve que se contentar em ver pela televisão, já que o que sobrou como Iugoslávia sofreu uma sanção em função da guerra, sendo excluída das Olimpíadas.

Na noite de 7 de junho de 1993, a seleção da Croácia havia enfrentado a Polônia. Drazen Petrovic fez questão de viajar dos EUA à Europa para representar seu país, ainda que numa partida que era certo que seu time não teria dificuldades para vencer. Após o jogo, ele não entrou no avião junto ao resto da equipe, decidiu voltar de carro junto à namorada. Naquela fatídica noite, Drazen Petrovic e a namorada morreram num acidente automobilístico na Alemanha. Ele dormia no carona; a namorada, ao volante, perdeu o controle do carro sob chuva e bateu num caminhão. Vlade Divac recebeu a notícia pela TV. Quis ir ao enterro do amigo, mas não pode, pois certamente não seria bem recebido. Um clima de comoção tomou a Croácia.

Pelas palavras de Divac: "Em minha mente, eu sempre pensei que a guerra acabaria um dia e Drazen e eu conversaríamos. Mas esse dia nunca chegou". Com o tempo, Divac volrou a falar com Dino e com Toni, os quais parecem também ter sentido que aquela história precisava ser contada em Once Brothers.

Vlade Divac no Sacramento Kings, onde teve a camisa aposentada

O documentário não é uma história do esporte, é muito maior. É uma história sobre dois esportistas e sobre a amizade, sobre as divergências de opinião, sobre as complexidades da vida. Para Divac, foi definitivamente um processo de cura. Ele diz no filme que era um fardo que ele carregava durante muitos anos. Once Brothers permitiu que ele fizesse algo que ele sempre quis fazer, forçou-o a falar com as pessoas que ele não falava havia muitos anos. Tornou-se um processo de cura para ele. Ele visitou Zagreb na gravação como uma forma de se reconectar com a Croácia e com o amigo morto. As imagens dele andando pelas ruas da capital croata mostram o quanto havia rancor no olhas das pessoas que, mais de duas décadas depois, mostravam a profundidade da ferida que ficou aberta. Um único croata o pára para falar com ele. Divac visitou a família de Drazen Petrovic para compartilhar a experiência dos dois e as conquistas juntos. Para fechar, ele, enfim, visitou o túmulo do amigo, sobre o qual deixou uma foto dos dois abraçados, com a camisa da Iugoslávia, comemorando uma vitória conjunta.


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