É difícil juntar todas as peças que detalhem exatamente como aconteceu a Revolução Negra no basquete, com uma explosão física descomunal que levou o jogo a uma outra dimensão frente ao que era praticado até então. O esporte norte-americano já conhecia a explosão muscular dos atletas negros no atletismo, afinal Jesse Owens havia deixado Adolf Hitler sem reação nos Jogos Olímpicos disputados na Alemanha em 1936, silenciando, em parte, o discurso de superioridade racial. Mas o basquete era considerado um jogo de raciocínio, e não músculos, e isto fez o preconceito racial demorar mais a aceitar a presença do atleta negro. Mas não haveria barreira capaz de impedir aquela revolução, que já explodia nas periferias urbanas dos EUA. Veio então a erupção no basquete profissional: Bill Russell, Oscar Robertson, Wilt Chamberlain, Elgin Baylor, uma explosão de talentos fantásticos.
Paralela a esta revolução, eclodiam os conflitos sociais nas ruas dos Estados Unidos. Martin Luther King e Malcom X pregavam uma nova sociedade nas ruas. Atletas negros do atletismo, do basquete e do futebol americano engajavam-se nesta luta, que acontecia em paralelo, mas que em essência era a mesma, contra o preconceito e em busca de aceitação. Bill Russell foi um herói dos direitos civis, além do multicampeão como jogador e técnico (ao mesmo tempo) do Boston Celtics, equipe absolutamente hegemônica na NBA nos Anos 1960.
Para contar esta história, vamos começar a investigação no livro "The Crossover: Uma Breve História de Basquete e Raça, de James Naismith a LeBron James". Depois dos anos 1960 passou a ser quase impossível imaginar que em seus primeiros dias, o basquetebol foi considerado um jogo para jogadores mais baixos, atletas de maior estatura eram considerados lentos e desajeitados. O jogo se concentrava no centro da quadra. Era um jogo de estratégia, e para o preconceito racial da época, isto restringia-o a atletas de raça branca. O papel principal em quebrar este paradigma preconceituoso no basquete nasceu com Bill Russell, desde seu primeiro campeonato na NCAA pela Universidade de San Francisco, em 1955, até seu último título na NBA com os Celtics, em 1969. Ele não só redefiniu o basquete, mas, à medida que o movimento pelos direitos civis ganhava impulso em paralelo à sua carreira, ele redefinia o papel do atleta negro.
Nascido em West Monroe, Louisiana, em 1934, as primeiras experiências de vida de Bill Russell foram similares às de dezenas de milhares de outros afro-americanos. O pai de Russell trabalhava em uma fábrica de papel e tinha pouca esperança de crescimento social. O Sul era altamente segregado e o linchamento de negros ainda era comum e aceitável nas ruas da Louisiana. Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) sua família se mudou para o oeste americano, indo para Oakland, na Califórnia, em busca de melhores trabalhos nos estaleiros do litoral do Pacífico. O cenário de segregação era outro frente ao enfrentado no sul, mas ainda era uma realidade presente. O pai de Russell conseguiu um emprego nas docas, mas perdeu-o em 1945, quando a guerra terminou. A família caiu na pobreza. Nos anos seguintes o desemprego aumentou, inaugurando a estagnação econômica e aumentando a tensão racial.
Em 1946, sua mãe adoeceu e morreu. Russell e ela tinham sido muito próximos e sua morte o mudou. Ele perdeu a confiança, ficou mais tímido e retraído, passando horas lendo na Biblioteca Pública de Oakland. Quando entrou na universidade, imediatamente o colocaram no atletismo. Mas foi no basquete que ele encontrou uma forma de usar sua maior arma - sua mente - para repensar a forma de se jogar aquele esporte. Até os Anos 1950, um defensor no basquete não saltava, mantinha os pés no chão, para evitar que o adversário provocasse uma falta. Bill Russell começou a testar uma defesa saltando para interceptar a bola. Foi uma primeira revolução na forma de se jogar aquele esporte. Os treinadores tentaram impedi-lo inicialmente, mas não demoraram a perceber o quão eficiente era aquela estratégia. Ele a adaptou também para o ataque, e sua pontuação começou a crescer muito no time universitário (passou a uma média de 14 pontos por jogo). Ele ganhou uma bolsa na USF. Como ele escreveu em sua autobiografia: "uma pequena escola que ninguém buscava. Um rapaz alto que ninguém mais queria. Para mim, era uma coisa de rara beleza ... Era a faculdade". Significava uma chance de escapar do racismo e da pobreza com os quais ele crescera. Foi ali que ele criou todo o basquete que foi jogado nas décadas seguintes.
Em 1950, Earl Lloyd, Chuck Cooper e Nat Clifton se tornaram os primeiros jogadores negros da NBA. Mas a integração a nível profissional era muito lenta. Pouco depois, na USF, as habilidades e talentos de Bill Russell explodiram. Em 1954, o treinador da USF, Phil Woolpert, colocou Russell para jogar junto aos companheiros afro-americanos K.C. Jones e Hal Perry. Foi, surpreendentemente, a primeira vez que uma grande equipe de basquete, fora das ruas e guetos, colocava três negros juntos em quadra. Foram campeões da NCAA em 1956, com Bill Russell tendo médias de 20 pontos e 20 rebotes por jogo. Só não dava para saber quantos foram os muitos tocos que ele distribuiu nestas partidas, pois não se media este fundamento ainda, que praticamente foi ele, Russell, quem inventou.
Mas as barreiras ainda eram enormes. E um acontecimento prova: em 1954, o time da USF viajou para jogar em Oklahoma City no Natal e nenhum dos hotéis da cidade aceitou hospedar os jogadores negros; em solidariedade, toda a equipe decidiu junta ir para um dormitório vazio. Russell seguia adiante, tentando sempre mostrar bom humor frente a comportamentos racistas que partiam das arquibancadas dos ginásios. Decidiu que só havia uma forma de derrubá-los: fazer sua equipe vencer. A carreira de sucesso no basquete universitário chegou à liga profissional, e nos 13 anos em que defendeu o Boston Celtics na NBA, ele foi campeão de 11 campeonatos.
Em 1960, Oscar Robertson e sua força física alinhada a sua inteligência para orquestrar a equipe, também chegou à NBA avassalador, fazendo um número altíssimo de triplos duplos nas suas cinco primeiras temporadas. Chegava também Wilt Chamberlain, e sua descomunal capacidade de pontuar e pegar rebotes, um homem que ninguém foi capaz de superar em termos da amplitude e variedade de recordes obtidos na história da NBA. Os orgulhosamente negros Russell, Chamberlain, Robertson e Elgin Baylor, estavam refazendo o jogo, criando uma nova forma de jogá-lo, que não foram eles que inventaram, amadureciam nos guetos dos grandes centros urbanos norte-americanos, pelas mãos habilidosas de diversos jovens negros, muitos dos quais anônimos para a história.
Enquanto isso, os Estados Unidos entravam na Era dos Direitos Civis. Russell escreveu sobre si mesmo, ainda nos Anos 1960: "Foi a primeira vez em quatro séculos que o negro americano pôde criar sua própria história. Ser parte disto é uma das coisas mais significativas que podem acontecer".
O crescimento do movimento de direitos civis colocou atletas negros no centro das atenções políticas. Cassius Clay, campeão mundial de boxe, virou Muhammad Ali, depois de ter sido banido do boxe por três anos e meio depois de se recusar a entrar no exército quando foi recrutado para ir à Guerra do Vietnã. No pódio de medalhas nos Jogos Olímpicos de 1968, na Cidade do México, os corredores Tommie Smith e John Carlos, no atletismo, mantiveram seus punhos com luvas negras estendidos acima de suas cabeças. Explodia o movimento Black Power (poder negro). No futebol americano, O.J. Simpson também reescrevia a forma de se jogar o jogo. Já Bill Russell, entretanto, forjou seu próprio caminho nesta luta política: franco, opinativo, intransigente e pensativo. O oposto do extravagante estilo de seu amigo Wilt Chamberlain.
Bill Russell era politicamente ativo. Em 1959, enquanto o movimento de descolonização se espalhava por toda a África, ele viajou ao continente de origem de seus antepassados, visitando Líbia, Etiópia e Libéria. Conversou na Etiópia com o imperador Haile Selassie, na parte traseira de um carro, depois, na Libéria, um estudante perguntou a Russell por que ele estava lá, e ele foi direto na resposta: "Vim aqui porque acredito que em algum lugar da África está minha casa ancestral. Eu vim aqui porque eu sou atraído por isto, como qualquer homem, atraído para procurar a terra de meus antepassados". Os alunos ficaram de pé e aplaudiram, e Russell se quebrou em lágrimas.
Em quadra, Russell continuou ganhando. Em 1966, Auerbach o transformou em treinador-jogador dos Celtics, o primeiro treinador afro-americano de uma equipe da NBA. Um diferencial a mais na sua vitoriosa carreia: duas vezes campeão da NCAA e onze vezes campeão da NBA. Em 1969, ele liderou a equipe do Celtics, com Sam Jones e John Havlicek, para o último título que ele conquistou, uma batalha de sete jogos contra o Los Angeles Lakers de Chamberlain, Baylor e Jerry West. Após o jogo final, Bill Russell se foi, rompendo laços com Boston por décadas. O basquetebol profissional tinha sido transformado de um jogo baseado no solo para algo jogado no ar. A NBA tinha ido de uma liga com 15 jogadores afro-americanos para um universo em que predominava uma maioria de negros.
Wilt Chamberlain também mudou quando viu Martin Luther King em um caixão, em 9 de abril de 1968. Cinco dias antes, o líder dos direitos civis dos negros havia sido assassinado. Dois dias após o assassinato, iniciaram-se os históricos distúrbios de Baltimore. Ao mesmo tempo, o ressentimento crescente com a Guerra no Vietnã rasgava a nação. Antes da morte de King, Chamberlain raramente abordava publicamente as questões sociais, culturais e políticos dos EUA.
Sua vida emergiu na Filadélfia, tornou-se um superstar nacional na Universidade de Kansas, depois um estrela da NBA, após um ano jogando com o Harlem Globetrotters. Wilt Chamberlain combinava força física e agilidade de uma forma que até então era raríssima de ser vista. Ele dominava completamente o jogo, embora sempre tenha tido que enfrentar as críticas por seu arremesso de lance-livre ruim. Extravagante em seu jeito de ser, sofria consequências por isto, ainda mais num contexto de amplo preconceito racial. Em 1962, após o jogo que terminou numa briga generalizada entre os jogadores do Boston Celtics e do Philadelphia Warriors, foi ele e sua força física sobressalente que apareceram em jornais como "o inimigo público número 1", ainda que Chamberlain não tenha dado um soco no meio da confusão. Mas certamente ele sempre esteve longe de ser um jovem bem comportado. Sua maior derrota dentro das quadras, entretanto, foi a de ter pela frente seu amigo Bill Russell. Os dois se enfrentaram 142 vezes numa quadra de basquete, com apenas 57 vitórias de Wilt, e 85 vitórias de Bill.
Mas Chamberlain sempre procurou evitar o envolvimento com o ativismo sócio-político. Desde os tempos do boxeador Jack Johnson, passando pelo ícone das pistas de atletismo Jesse Owens, a luta pela liberdade e igualdade social dos negros se manifestou em campos, tribunais e estádios. Porém, os atletas que se manifestavam, frequentemente arriscavam suas carreiras profissionais. No esporte dos anos 1960, os ícones desta luta de direitos civis foram Jim Brown, do futebol americano, Muhammad Ali, do boxe, e Bill Russell. Estes três, junto aos velocistas John Carlos e Tommie Smith, nos Jogos Olímpicos de 1968, tornaram-se os rostos de atletas negros no ativismo dos anos 60, uma década marcada por assassinatos políticos, ataques incendiários a igrejas, tumultos e uma onda crescente de libertação dos negros.
Já Chamberlain afirmava que "a melhor maneira de ajudar a integração, é viver uma vida limpa e boa". Na sua segunda temporada na NBA, ele recusou o pedido de John F. Kennedy para ajudá-lo a fazer campanha para a presidência, em 1960. Em 1964, Elgin Baylor, Oscar Robertson e Tommy Heinsohn ameaçaram boicotar o All-Star Game, queriam melhores condições trabalhistas. Só Chamberlain, entre os negros cotados para o Jogo das Estrelas, falou desde o princípio que incondicionalmente entraria em quadra.
Bill Russell ficou em choque com o assassinato de Martin Luther King, passou a noite em claro num quarto de hotel na Flórida, enquanto a violência se espalhava pelo país em choques entre a polícia e a comunidade negra norte-americana, e em meio a várias atitudes racistas de radicais que se negavam a lamentar a morte de King. Russell era um dos atletas mais visivelmente envolvidos no movimento de direitos civis, e para ele o assassinato foi uma espécie de confirmação: "coisas que eu disse dez anos atrás, e todo mundo ignorou ao ver um negro bravo falar, estão acontecendo hoje". O assassinato, para toda a comunidade negra, era um sentimento não apenas pessoal, era a afirmação do valor da vida negra colocada em cheque.
Durante a procissão após o funeral de Martin Luther King, em Atlanta, com a realidade fria do corpo de King presente, Chamberlain decidiu engajar-se politicamente. Mas diferentemente da onda liberal e da maioria dos negros, engajados com o Partido Democrata, ele escolheu apoiar o Partido Republicano, pela figura de seu então líder Richard Nixon. Pela própria definição de Wilt: "ao longo de sua carreira política, (Nixon) tinha sido chamado de um perdedor, o cara que nunca poderia ganhar um grande. Eu também. Passei a me perguntar o que poderia fazer para ajudar a América, e particularmente a minha gente. (Nixon) sinceramente trabalha para a igualdade para os homens negros, marrons e amarelos". Ele como ele mesmo relatou: "todos os meus amigos negros ficaram surpresos e com raiva".
Wilt Chamberlain foi atraído pelo discurso de Nixon de construção de um "Capitalismo Negro". Bill Russell, sempre um amigo próximo, falou ao jornal Los Angeles Times em 1968: "você percebe o quão pouco (Chamberlain) sorri. Isso não é porque ele está com raiva o tempo todo. É porque ele está sozinho. Um estranho". Mas não tardou para que ele constatasse posicionamentos racistas contra os negros entre aqueles que estavam apoiando a Nixon, figura individual na qual ele continuava acreditando. O grande desconforto na Convenção Nacional Republicana foi com a postura de Spiro Agnew, governador do estado de Maryland. Como Chamberlain escreveu em sua autobiografia: "o idiota deve ter dito 'Negro' e 'lei e ordem' umas 10.000 vezes".
Nixon derrotou o candidato democrata Hubert Humphrey em novembro de 1968. E ele fez isso com praticamente nenhum apoio da comunidade negra, pois recebeu apenas 12% do voto não-branco (negros e latinos). Chamberlain acreditou que poderia participar de uma Casa Branca liderada por Nixon, envolvendo-se com questões sociais e políticas durante seu mandato. Ele mesmo admitiu ter sido ingênuo, embora nunca tenha guardado muito rancor. Chamberlain descobriu que a política era, é e será sempre um jogo sujo. Como definiu Wilt Chamberlain ao reflexionar sobre suas descobertas neste processo: "a política não é muito diferente de tudo o que os seres humanos fazem. Não é uma arte mística, santa. É apenas a vida".
Após o envolvimento na campanha de Nixon, Wilt Chamberlain concretizou sua badalada transferência, trocando o Philadelphia 76ers pelo Los Angeles Lakers. Seu lugar agora seria na Califórnia, no mesmo time de Elgin Baylor, um time montado para derrubar a hegemonia absoluta do Boston Celtics de Bill Russell. A NBA já se havia transformado numa liga essencialmente curvada ao talento dos atletas negros, que haviam se tornado suas maiores estrelas: Bill Russell, Wilt Chamberlain, Oscar Robertson, Nate Thurmond, Dave Bing, Elgin Baylor e outros. Jerry West era a única estrela de raça branca naquele momento. No centro deste cenário, que inflamava plateias totalmente brancas de torcedores nas arquibancadas, estava o duelo que esportivamente marcou uma era: Russell vs Chamberlain. De um lado o jeito centrado e interiorizado de Bill Russell, atencioso e intelectualizado, do outro o jeito extrovertido e exteriorizado de Wilt Chamberlain, na típica vida de "playboy", com gastos extravagantes e festas. No duelo entre um Russell que jogava coletivamente, e um Chamberlain que individualizava a maioria das ações de sua equipe, só Russell vinha se tornando campeão. E o Wilt tinha que lidar com muitas críticas por causa disto.
Os Celtics foram os campeões nas Finais de 1957. Depois foram derrotados nas Finais de 1958 pelo St. Louis Hawks. Das Finais de 1959 às de 1969, foram campeões dez vezes em onze temporadas. Ganharam oito títulos consecutivos, foram derrubados pelo Philadelphia 76ers de Wilt Chamberlain na final da Conferência Leste de 1967. Mas Wilt só o superou desta vez, pois nas duas temporadas seguintes, as duas últimas de Bill Russell no basquete, o título foi mais duas vezes para o Celtics, mesmo após Wilt Chamberlain mudar de conferência e se juntar à equipe mais forte da Conferência Oeste, na qual os Lakers foram os vencedores em sete das nove temporadas disputadas entre 1962 e 1970.
Bill Russell e Wilt Chamberlain mudaram o basquete para sempre. Mas não foram apenas eles; Oscar Robertson, Elgin Baylor, e toda uma safra de jogadores que tornaram o jogo muito mais atlético do que era antes. Fizeram uma revolução negra, pois nunca antes no basquete ninguém tinha sido capaz de ver força e agilidade combinadas em jogadores tão altos. Acabava a pré-história e se iniciava a história do basquetebol masculino. Nunca mais nada seria como antes. E a estrela que explodiu nas quadras de basquete para perpetuar esta verdade foi o jovem Lew Alcindor, que logo se tornou um amigo próximo de Wilt, ainda que com um caráter e uma personalidade muito mais próximos aos de Bill. Este garoto amadureceu, afastou-se do mundo extravagante de Chamberlain, emergiu na luta política de direitos civis, e assim como Cassius Clay que se rebatizou como Muhamad Ali, também decidiu se rebatizar, passando a se chamar Kareem Abdul Jabbar. Em ambos os casos, com a luta dos direitos civis dos negros encontrando identidade no islamismo frente aos preconceitos da América católica. Dali para frente, o basquete nunca mais seria o mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário