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domingo, 28 de setembro de 2025

Pelo não aproveitamento de 1 rebote, a África não teve o apogeu histórico de seu basquete


O time do Sudão do Sul era formado por um "grupo de refugiados" que quase escreveu uma história monumental ao quase - mas muito quase - ter vencido ao "Team USA" em amistoso disputado em Londres, na Inglaterra, jogo preparatório para os Jogos Olímpicos de 2024, do qual ambos não só participariam, como cairiam no mesmo grupo e voltariam a se enfrentar. Um país quase que envolvido em um conflito permanente, sonhando mudar a sua história através do esporte.

Todos os membros da Seleção do Sudão do Sul de basquete em 2024 eram descendentes de famílias que fugiram das guerras do país mais jovem do mundo e agora, graças ao basquetebol, reencontraram as suas raízes. O que os jogadores mais destacaram após esta "quase-vitória": lá no Sudão do Sul nós não temos quaras cobertas de basquete.


O Sudão do Sul era o país mais jovem do mundo naquele momento, tinha apenas 11 anos de vida. Uma nação que se acostumou a viver em conflito permanente. Duas longas e duras guerras (1955-1972 e 1983-2005) acabaram por levar - em 2011 - e após um referendo de independência, à separação oficial do Sudão. Mas os problemas não pararam por aí, porque dois anos depois começou uma outra guerra, neste caso civil, que mergulhou o país mais jovem do mundo num caos, ainda em 2024 com consequências e resquícios de violência, apesar de seu fim em 2020. Um contexto extremamente obscuro, que deu origem à fuga de milhões de cidadãos do país como refugiados, entre os quais os familiares de todos os jogadores que representaram a seleção de basquete do país no basquete das Olimpíadas de 2024.

Após estar inscrito como nação na FIBA havia apenas 11 anos, o Sudão do Sul conseguiu se classificar para os Jogos Olímpicos. E na estreia nos Jogos de Paris já fez história, pois venceu a Porto Rico. Um feito e tanto se tivermos em conta de ser um dos países mais pobres do mundo (o 7º com pior PIB per capita do planeta em 2024, equivalente a 518 euros).

Com jogadores emigrando para Austrália, Canadá, Estados Unidos ou Inglaterra, filhos da guerra e do desespero, viabilizou-se o sonho de logo ser montado um time de basquete competitivo, ainda que seja um feito quase inacreditável frente a tão pouco tempo e tantas adversidades.

Entre os principais nomes de seu elenco, Carlik Jones nasceu em Ohio, nos Estados Unidos, para onde seus pais emigraram como refugiados. Wenyen Gabriel, jogador do Los Angeles Lakers até junho de 2024 e então contratado pelo Maccabi Tel Aviv, de Israel, nasceu em Cartum, capital do Sudão, mas quando criança fugiu com a família. Nuni Omot veio ao mundo num campo de refugiados no Quênia, Jok Kacuol cresceu no Uganda, para onde teve de fugir depois de o seu pai e dois avós terem sido mortos na guerra civil. J.T. Thor, o único jogador sul-sudanês da NBA naquele momento, cresceu no Alasca por motivos semelhantes. Marial Shayok nasceu em Ottawa, no Canadá, filho de pai e mãe sul-sudaneses. Makur, seu pai, fugiu da guerra civil na década de 1980 e acabou no Texas para jogar basquete.

Quase todos no elenco eram filhos de sul-sudaneses, mas eram poucos os nascidos no país, embora um brilhe entre os demais: Khaman Maluach. Com apenas 17 anos, e 2,18 metros, ele integrou a equipe que participou do último Campeonato Mundial, em 2023, e repetiu a presença nos Jogos Olímpicos poucas semanas depois de ingressar na Universidade de Duke, a mais tradicional de basquete nos Estados Unidos. Ele nasceu em Rumbek, no atual Sudão do Sul, embora tenha crescido em Uganda como resultado da guerra civil no seu país, e se destacado na NBA Academy realizada em Saly, no Senegal.

Kuany Ngor Kuany nasceu em Aweil em 1994 e se mudou para Melbourne, na Austrália, aos 9 anos, e lá se desenvolveu. Sunday Dech, por sua vez, nasceu em Gambela, na Etiópia, filho de pais sul-sudaneses da tribo Anuak, ele se mudou para Perth, na Austrália, aos 6 anos. Jackson Makoi nasceu no Egito com sua família que para lá fugiu da guerra em 2000, e de lá se mudou para Melbourne, também na Austrália, onde se desenvolveu como jogador de basquete. Majok Deng nasceu em 1993 em Bor, no Sudão, e viveu lá até os 8 anos, e teve que se mudar para a Austrália em 2006, depois de passar algum tempo no Quênia como refugiado, chegando mais tarde a Adelaide com sua irmã e sua mãe.

Talvez do ponto de vista político, Peter Jok seja quem mais sabe o que é sofrer uma guerra. O armador não conhecia o que era basquete até os 9 anos de idade. Aos 3 anos, o seu pai, comandante do Exército de Libertação do Povo do Sudão, foi assassinado. Sua família fugiu então para Uganda e depois para os Estados Unidos, onde chegaram em 2003.

Como disse o ex-NBA Wenyen Gabriel depois da quase-vitória sobre os Estados Unidos: "Queremos que nosso país seja respeitado. Somos um grupo de refugiados que se reúne somente algumas semanas todos os anos, dando o nosso melhor, jogando contra alguns dos melhores jogadores de todos os tempos". E ainda assim, quase, mas muito quase, fizeram história. Na verdade, fizeram história! Mas estiveram muito perto de fazer uma ainda maior, daquelas que se tornam míticas para toda a eternidade!

Uma grande parte do mérito por este trabalho realizado vai para o ex-jogador da NBA Luol Deng, que nasceu em 1985 em Wau, ele foi uma peça-chave para que o Sudão do Sul chegasse aos Jogos Olímpicos de Paris. Deng e sua família deixaram o Sudão pelo Egito devido à guerra, mas após obterem asilo político, decidiram emigrar para a Grã-Bretanha. Antes, no Cairo, ele aprendeu a jogar basquete com outro refugiado sudanês: Manute Bol, mítico nome que também brilhou na NBA. Passando pela St. Mary's Academy, em Londres, Deng chegou à NBA, onde fez carreira por 14 anos.

Desde 2019, coincidindo com a sua aposentadoria, ele preside a federação de basquete do Sudão do Sul. Ficou encarregado de encontrar e recrutar os jogadores que hoje compõem a seleção nacional, convencê-los a optar por jogar por seu país de origem e reuni-los às suas raízes. É por isso que Deng mal conseguiu conter as lágrimas há um ano, na Copa do Mundo, onde o Sudão do Sul selou a sua passagem de classificação para Paris: "Todo mundo já viu: quando se investe na África e nos seus jovens, quando se investe nessas pessoas e lhes dá uma oportunidade de sucesso, eles demonstram todo o talento que têm e que podem estar ao nível de qualquer um".

Tecnicamente, a maior estrela da equipe é Carlik Jones. Ele surpreendeu a todos na Copa do Mundo de 2023, quando integrou o time que participava pela primeira vez de uma Copa do Mundo. Contra os Estados Unidos, o armador conquistou o triplo-duplo (15 pontos, 11 rebotes e 11 assistências), sendo o primeiro na história a ter conseguido esta estatística contra o "Team USA".


Ele que havia sido MVP da G-League, Liga de Desenvolvimento da NBA, e tinha jogado pouco em partidas da NBA antes de ir para a China. Aos dois anos de idade, ele foi diagnosticado com craniossinostose, uma doença das articulações fibrosas dos ossos do crânio, que fecham prematuramente. A partir de então ele foi proibido de praticar esportes. Porém, seu bom tratamento, e o uso de capacete até a adolescência, permitiram que ele se recuperasse e começasse a se destacar primeiro na Universidade de Radford e depois em Louisville.

Apesar de não ter sido escolhido no Draft da NBA, ele se destacou no Texas Legends e estreou no Dallas Mavericks em 2021. Sem conseguir se firmar, continuou na G-League e explodiu em 2023, sendo escolhido o MVP da competição defendendo ao Windy City Bulls, time de desenvolvimento do Chicago Bulls. Porém, pelo Chicago, teve apenas 7 jogos, reduzidas oportunidades, com média de 8 minutos e 2,9 pontos. Depois de uma temporada na China, com propostas da Europa para o seu futuro, Jones surpreendeu os melhores da NBA e o Sudão do Sul quase venceu.



A Quase-Vitória sobre os Estados Unidos

Depois de um forte começo da equipe favorita, ainda no 1º Quarto o Sudão do Sul assumiu a liderança, e de forma assombrosa, surpreendendo ao mundo inteiro, a mantiveram pelos 23 minutos seguintes. Quando faltavam 3:25 minutos para o fim do 1º quarto, Majok Deng pegou um rebote defensivo quando o placar apontava 16-16. O Sudão do Sul foi então ao ataque e faltando 3:20 minutos, Khaman Maluach, com assistência de JT Thor, converteu para passar a frente por 18-16. Steve Kerr então parou o jogo.


Na equipe sul-sudanesa, Nuni Omot foi um dos nomes que mais se destacaram em surpreender ao "Team USA", sem se intimidar, e às vezes até mesmo intimidando à equipe dos EUA com sua fisicalidade e força. Eles eram implacáveis no jogo de garrafão, e sufocantes na defesa. Marial Shayok foi um dos grandes destaques. Ele fez 27 pontos no amistoso contra o Reino Unido e repetiu a sua capacidade ofensiva contra os norte-americanos.

O Sudão do Sul não se intimidou e gradativamente foi ampliando a vantagem. O mundo ficou assombrado quando o 1º tempo terminou com uma vantagem elástica dos sul-sudaneses no placar: 58-44 para o Sudão do Sul!


Só que na volta do intervalo, o "Team USA" voltou energizado e disposto a mudar tudo na partida. Durante o 3º quarto, encaixaram uma sequência de 18-0 que os colocaram novamente na partida. Mas só conseguiram assumir a liderança no placar no fim do terceiro período. A corrida decisiva que impediu "o milagre" reverteu o placar de 76-65 em favor dos sul-sudaneses para 83-76 em favor dos norte-americanos.

Os Estados Unidos retomaram a liderança. Faltavam 41 segundos para o fim do período quando JT Thor errou um arremesso de três. Os EUA pegaram o rebote defensivo e partiram ao ataque. O placar apontava 76-76. Quando faltavam apenas 29 segundos, Stephen Curry acertou um de seus mágicos arremessos de três: EUA 79-76. 


No fim do período, Marial Shayok ainda erraria uma nova tentativa de três pontos. No ataque seguinte, Joel Embiid aproveitou um rebote e, no estouro do cronômetro, ainda colocou os EUA com 81-76 a seu favor. Iniciava-se o último quarto com uma vantagem norte-americana de 5 pontos. A chance estava perdida? Os sul-sudaneses não pensavam assim. No último quarto voltaram a reagir e a encostar novamente no marcador. A reta final foi "cabeça a cabeça".


JT Thor fez talvez a maior jogada de sua carreira, acertando uma bola de três na cara de LeBron James para assumir a liderança por 100-99 quando faltavam 20 segundos para o final. Eles podem não ter vencido o jogo, mas Thor deverá ter aquela foto emoldurada e pendurada na parede de sua casa por toda a eternidade.


No último ataque norte-americano, com todas aquelas estrelas em quadra, podia haver dúvidas sobre quem faria o último arremesso. Mas quando você tem LeBron James no seu time, ele sempre será a primeira opção, e o técnico Steve Kerr definiu a jogada que colocava a bola nas mãos dele. LeBron fez com que tudo parecesse fácil: ele esperou, esperou, esperou, depois atacou e colocou tudo com facilidade para colocar os EUA de volta na liderança. Como sempre, LeBron entregou o prometido: faltavam 8 segundos e o placar passava a estar 101-100.

O Sudão do Sul teve 8 segundos para um último ataque, para tentar converter a bola que lhe daria a vitória. Carlik Jones lançou o arremesso e a bola bateu no vidro da tabela quando faltavam cerca de 4 segundos para o final. Ainda houve tempo para um rebote, mas com o ataque mal posicionado, e a defesa norte-americana em vantagem, o que impediu que a cesta fosse convertida. Gabriel teve a chance de recuperar o rebote ofensivo, mas os Estados Unido sobreviveram ao susto!!!

Ainda assim, apesar do não-acerto, Carlik Jones foi o homem da noite. Ele registrou um triplo-duplo contra aquele que muitos consideram um dos melhores times já montados na história do basquete. Fez 15 pontos, pegou 11 rebotes e deu 11 assistências, sendo peça central do Sudão do Sul em uma noite histórica em Londres! Já LeBron liderou o seu time, com 23 pontos, 6 assistências e 6 rebotes, para assim evitar que os norte-americanos sofressem uma das surpresas mais chocantes da história do basquete!



Ficha do Jogo
20/07/2024 - ESTADOS UNIDOS 101 x 100 SUDÃO DO SUL
Parciais: 24 x 26 / 20 x 32 (44 x 58) / 37 x 18 (81 x 76) / 20 x 24 (101 x 100)
EUA: Stephen Curry (10), Jrue Holiday (8), Devin Booker (5), LeBron James (25) e Anthony Davis (15). Téc: Steve Kerr. Banco: Tyrese Haliburton (0), Derrick White (0), Jayson Tatum (9), Antony Edwards (11), Bam Adebayo (4) e Joel Embid (14).
Sudão do Sul: Carlik Jones (15), Marial Shayok (24), Peter Jok (8), Nuni Omot (9) e J.T. Thor (14). Téc: Royal Ivey. Banco: Jackson Makoi (2), Bul Kuol (3), Wenyen Gabriel (11), Majok Deng (7) e Khaman Maluach (7).




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